segunda-feira, 26 de março de 2012

UMA VIAGEM NO TEMPO

E o tempo foi a guerra do Ultramar português, onde estavam inseridas, as províncias, em solo africano, de Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Eu fui mobilizado em missão de soberania, integrado numa Companhia Móvel da Policia de Segurança Pública.
Fui parar a Angola, onde permaneci dois anos. Foi um tempo que considero muito bom, dada a minha juventude, nada nos metia medo, a guerra parecia uma brincadeira. À saída de Lisboa, em Junho de 1963, (precisamente quatro dias depois de ter caído uma placa de betão armado que servia de abrigo aos utentes do comboio da linha de Cascais, no cais do Sodré, que tirou a vida a uma vintena de pessoas, também nesse ano estava em curso a construção da PONTE sobre o TEJO), parecia que íamos para uma festa, embarcamos no velho UIGE, apoiados pelas senhoras do Movimento Nacional feminino que nos deram alguns maços de tabaco e nos desejaram boa sorte!... 
Este Movimento foi criado pelo governo de Salazar para mostrar uma certa solidariedade entre as forças armadas que partiam e os portugueses que ficavam a sofrer de saudades, dos seus familiares, sem a certeza que eles voltariam. Estas incertezas fizeram sofrer muitos pais, muitos irmãos, muitas namoradas e muitos amigos. Muita desta gente veio, infelizmente a chorar os seus mortos e a fazer o luto sem corpo, tragédia que ainda hoje não esqueceram!... Este Movimento também, proporcionava os contactos com madrinhas de guerra, para os soldados, que eram confortados por estas, através de aerogramas, fornecidos grátis e com porte pago pelo governo. Muitas destas madrinhas tornaram-se esposas destes soldados!
Chegamos a Angola passados treze longos dias a balouçar nas ondas do Oceano Atlântico, escoltados pelos golfinhos, que dum lado e do outro do barco, nos acompanhavam durante muitas milhas, fiquei surpreendido de ver peixes a voar, não sabia que existiam, o enjoo não nos abandonava, mas lá chegamos a Las Palmas, que para mim e para muitos dos meus colegas, era a primeira vez que pisávamos solo estrangeiro. Daqui fomos parar a São Tomé, mas não atracamos porque não havia cais, e se quisemos ir a terra tivemos que nos aventurar a viajar num barco que já não me lembro se era a motor ou a remos, mas fomos e regressamos passadas algumas horas. Posto o pé pela primeira vez em solo africano, senti uma sensação estranha, que me levou a perder a euforia que sentia até ali. Enquanto estivemos na ilha aproveitamos para dar uma volta. Ao cair da noite, ao passarmos junto a um restaurante, senti um arrepio ao ouvir, em terras tão longínquas, o nome de Cantanhede na rádio, que tinha um altifalante na esplanada.
A notícia era do regresso de Vagos da bandeira dos Bombeiros Voluntários onde todos os anos ali se desloca em peregrinação, para cumprir uma promessa feita numa ocasião em que não chovia há quatros anos, pelo que levou estas gentes de Cantanhede, a deslocar-se à Nossa Senhora da Varziela, implorando que chovesse.
Ao chegarem a esse local, ouviram um sino a tocar para os lados de Vagos e para aí se deslocaram. Foram até encontrar uma ermida onde se encontrava a imagem de Nossa Senhora de Vagos, e aí de frente à Imagem lhe imploraram que chovesse para suas terras, o que aconteceu. E logo prometeram, que todos os anos ali iriam com o chamado “bodo” a distribuir pelos pobres, o que ainda hoje acontece. Isto é o que diz a lenda!
Então embarcados de novo no velho UIGE, lá fomos nós rumo a Luanda.
Ao atracarmos, fomos recebidos com o som arrepiante a sair dos altifalantes a gritar ANGOLA É NOSSA; ANGOLA É NOSSA……….. com uma música a acompanhar, que fazia por os cabelos em pé. Depois de sermos apresentados e distribuídos pelos respectivos serviços do Comando da Polícia de Segurança Pública de Luanda. A partir de agora, ficámos sujeitos aos perigos duma guerra sem frente de batalha. O perigo estava escondido em cada esquina e em cada canto, em especial nos ”Muceques” (residências construídas de pau a pique, onde só moravam nativos). Era muito perigoso patrulhar aqueles sítios, mas apesar de algumas escaramuças, lá nos fomos safando.
Estou a falar só de Luanda onde a guerrilha estava controlada, pior era no resto do território, em especial no norte, onde aguerrilha continuava a deixar de luto tantas famílias que sem culpa nenhuma ficaram a sofrer uma vida inteira as perdas dos seus ente-queridos. Tinha-mos uma cantina da Polícia onde eramos comensais por nos ficar mais barato, pois o ordenado, embora fosse o tripulo do que ganhávamos na “metrópole”   não dava para uma pensão decente. Só estou falar disto para dizer que a alimentação era quase sempre a mesma, “pacaça velha” o que nos valia era a dentadura de jovem que tudo roía. O melhor prato era o grão com bacalhau, uma vez por semana. A vivência fora das funções profissionais era uma maravilha, pois o nível de vida em LUANDA era de gente rica, bom clima, boas praias, boas esplanadas de cinema, nas esplanadas das cervejarias com um cheiro a marisco contínuo, convidavam-nos a sentar à mesa a deliciar umas boas canecas de cerveja, com os aperitivos que as acompanhavam e eram à borla.
Vejam a diferença de Lisboa, onde o aperitivo eram tremoços. Aqui era um pires de dobrada com broa, uns “esquisinhos” fritos, ou um pires de camarão. Quem bebesse meia dúzia de cervejas, que era muito fácil atingir este número, dado a temperatura que rondava sempre os 35 graus, não necessitava de jantar. Por isto não podemos criticar a revolta dos “retornados”, com a vida que lá tinham e como para cá vieram viver (alguns).
Quero-vos dizer que a minha intenção não é escrever a minha biografia. E se escrevo muitas vezes na primeira pessoa… é porque, me é mais fácil narrar os contos ou os factos que são comuns a muita gente.
Agora sim vou falar um pouco de mim, nos dois anos que passei em Angola; foi um tempo bem passado, à parte dumas escaramuças com uns tiros para o ar e umas cabeças partidas resultado de desentendimentos entre negros e brancos, mas nunca provocados por mim, mas sim por alguns brancos, que se diziam meus amigos e se aproveitavam da minha posição policial para amesquinharem os nativos.
Isto dava sempre mau resultado, pois estávamos em plena divulgação da igualdade de direitos, colocando de lado as cores, aplicando uma psicologia que os nativos bem sabiam aproveitar, e alguns deles tinham mais cultura que aqueles que os queriam diminuir.
Fiz uma viagem em serviço ao sul, a Silva Porto onde tudo era pacífico, por isso os habitantes de lá não diziam Silva Porto, diziam Silva Morto. Era tudo tão calmo que durante a noite, apenas se ouviam, ao longe os grunhidos dos animais selvagens e o badalar do sino da torre, informando-nos as horas. A noite que lá passei, quase não dormi, aproveitando aquela calma para meditar, ainda hoje me lembro de tudo o que pensei naquela noite, as previsões que fiz para o meu futuro, e que muitas se concretizaram felizmente. De regresso a Luanda, pois estava a mil quilómetros, a maior parte do percurso feito em terra batida. Como não conseguia fazer a viagem só num dia, resolvi passar por Nova Lisboa, hoje Huambo, onde pernoitei. Aproveitei para visitar conterrâneos, que ali estavam radicados, há muitos anos e que nem sequer nos conhecíamos, mas receberam-me muito bem. Daqui para Luanda foi um “pulo” de setecentos quilómetros, lembro-me de ter almoçado na Cela um churrasco bem temperado com gindungo, que ainda hoje me está a saber bem!... 
Agora sim estava mais perto de Luanda, onde cheguei à noite.
Enquanto em Luanda fazíamos uma vida absolutamente normal, no norte continuavam as guerrilhas que iam “libertando da vida” tantos jovens, que sem culpa nenhuma, daquela guerra estupida, pagaram com a vida as asneiras feitas por uma ditadura, que só terminou com uma revolução feita por um punhado de corajosos. Bem hajam os capitães de Abril.
Quando terminamos os dois anos de comissão de serviço, regressamos… e com a sorte de viajarmos no melhor navio da nossa frota mercante O Infante D. Henrique (por onde andará este luxuoso paquete?) que maravilha. Uma cidade flutuante. Se não viéssemos ao convés, não sabíamos que vínhamos a navegar. Passamos novamente por Las Palmas, aí aproveitamos para fazer umas compras, pois como estávamos numa zona franca, as coisas eram mais baratas. Eu comprei um gravador de som, de bobines com fita magnética, que ainda hoje conservo, e regalo-me de ouvir o que gravei há 50 anos, no resto da viagem.
Ainda passamos pelo Funchal, ali fiquei chocado com o que vi. Crianças com seis, sete anos, a angariar clientes para as casas de bordel. O meu grupo trocou o bordel por uma visita a uma parte da ilha. As flores nesse tempo abundavam por todo o lado. Visitei a ilha há dois anos e já nada é igual, é tudo mais artificial. Corremos todas as tascas que existiam à beira do cais de embarque, a beber o bom vinho da Madeira e a comer “bacalhau com cebola crua”. Como é que chamam a este petisco?
Tão distraídos andávamos, que se esquecemos da hora do embarque, quando chegamos ao barco, as escadas do cais, já lá não estavam. Felizmente que o barco ainda estava encostado e tinha escada de serviço. Finda esta peripécia, foi só esperar mais vinte e quatro horas para chegar a Lisboa, onde chegamos no dia 21 de Julho de 1965 e já navegamos sob a ponte que se veio a  chamar Ponte Salazar.
Com o orgulho do dever bem cumprido, fomos recebidos pelo Sr. Comandante-Geral da Polícia de Segurança Pública Portuguesa no seu gabinete, pois dos mais de cem que fomos, só regressamos uma dúzia, pelo que não foi necessário receber-nos na parada. Desejou-nos as boas vindas e distribui-nos pelos diversos comandos.
A mim coube-me o comando de Coimbra. Pronto, a viagem acabou aqui, onde suportei a farda, durante oito longos meses.
A parti daqui, o meu destino foi outro e as viagens também!



Vila Nova, Março de 2012.      

2 comentários:

Ilidio disse...

Gostei especialmente desta crónica que é bem reveladora da personalidade forte e persistente do seu autor, a quem muito estimo e considero.
A escrita é feita de modo simples, agradável, escorreito e de fácil leitura.
A narrativa é um pequeno contributo para a história da “Guerra do Ultramar”, vista na perspectiva de quem lá viveu e a quem nunca deram voz.
Espero que continue a contar outras histórias desse tempo, de Angola e também da recepção aos soldados que eram recebidos no Vale Neno, com uma enorme faixa que dizia: “Bem-vindo salvador da Pátria”. Muito haverá para contar sobre esse período difícil e negro da história do nosso país.
Que nunca lhe falta a vontade e a inspiração.

Anónimo disse...
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