E o tempo foi a guerra do Ultramar português, onde estavam
inseridas, as províncias, em solo africano, de Angola, Moçambique, Guiné Bissau,
Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Eu fui mobilizado em missão de soberania, integrado
numa Companhia Móvel da Policia de Segurança Pública.
Fui parar a Angola,
onde permaneci dois anos. Foi um tempo que considero muito bom, dada a minha
juventude, nada nos metia medo, a guerra parecia uma brincadeira. À saída de
Lisboa, em Junho de 1963, (precisamente quatro dias depois de ter caído uma
placa de betão armado que servia de abrigo aos utentes do comboio da linha de
Cascais, no cais do Sodré, que tirou a vida a uma vintena de pessoas, também
nesse ano estava em curso a construção da PONTE sobre o TEJO), parecia que íamos
para uma festa, embarcamos no velho UIGE, apoiados pelas senhoras do Movimento Nacional
feminino que nos deram alguns maços de tabaco e nos desejaram boa sorte!...
Este Movimento foi criado pelo governo de Salazar para mostrar uma certa solidariedade
entre as forças armadas que partiam e os portugueses que ficavam a sofrer de
saudades, dos seus familiares, sem a certeza que eles voltariam. Estas
incertezas fizeram sofrer muitos pais, muitos irmãos, muitas namoradas e muitos
amigos. Muita desta gente veio, infelizmente a chorar os seus mortos e a fazer
o luto sem corpo, tragédia que ainda hoje não esqueceram!... Este Movimento
também, proporcionava os contactos com madrinhas de guerra, para os soldados,
que eram confortados por estas, através de aerogramas, fornecidos grátis e com
porte pago pelo governo. Muitas destas madrinhas tornaram-se esposas destes
soldados!
Chegamos a Angola passados treze longos dias a balouçar nas
ondas do Oceano Atlântico, escoltados pelos golfinhos, que dum lado e do outro
do barco, nos acompanhavam durante muitas milhas, fiquei surpreendido de ver peixes
a voar, não sabia que existiam, o enjoo não nos abandonava, mas lá chegamos a Las
Palmas, que para mim e para muitos dos meus colegas, era a primeira vez que
pisávamos solo estrangeiro. Daqui fomos parar a São Tomé, mas não atracamos
porque não havia cais, e se quisemos ir a terra tivemos que nos aventurar a
viajar num barco que já não me lembro se era a motor ou a remos, mas fomos e
regressamos passadas algumas horas. Posto o pé pela primeira vez em solo africano,
senti uma sensação estranha, que me levou a perder a euforia que sentia até ali.
Enquanto estivemos na ilha aproveitamos para dar uma volta. Ao cair da noite,
ao passarmos junto a um restaurante, senti um arrepio ao ouvir, em terras tão longínquas,
o nome de Cantanhede na rádio, que tinha um altifalante na esplanada.
A notícia era do regresso de Vagos da bandeira dos Bombeiros
Voluntários onde todos os anos ali se desloca em peregrinação, para cumprir uma
promessa feita numa ocasião em que não chovia há quatros anos, pelo que levou
estas gentes de Cantanhede, a deslocar-se à Nossa Senhora da Varziela,
implorando que chovesse.
Ao chegarem a esse local, ouviram um sino a tocar para os
lados de Vagos e para aí se deslocaram. Foram até encontrar uma ermida onde se
encontrava a imagem de Nossa Senhora de Vagos, e aí de frente à Imagem lhe
imploraram que chovesse para suas terras, o que aconteceu. E logo prometeram,
que todos os anos ali iriam com o chamado “bodo” a distribuir pelos pobres, o
que ainda hoje acontece. Isto é o que diz a lenda!
Então embarcados de novo no velho UIGE, lá fomos nós rumo a
Luanda.
Ao atracarmos, fomos recebidos com o som arrepiante a sair
dos altifalantes a gritar ANGOLA É NOSSA; ANGOLA É NOSSA……….. com uma música a acompanhar,
que fazia por os cabelos em pé. Depois de sermos apresentados e distribuídos pelos
respectivos serviços do Comando da Polícia de Segurança Pública de Luanda. A partir de agora, ficámos sujeitos aos perigos duma guerra
sem frente de batalha. O perigo estava escondido em cada esquina e em cada
canto, em especial nos ”Muceques” (residências construídas de pau a pique, onde
só moravam nativos). Era muito perigoso patrulhar aqueles sítios, mas apesar de
algumas escaramuças, lá nos fomos safando.
Estou a falar só de Luanda onde a guerrilha estava
controlada, pior era no resto do território, em especial no norte, onde
aguerrilha continuava a deixar de luto tantas famílias que sem culpa nenhuma
ficaram a sofrer uma vida inteira as perdas dos seus ente-queridos. Tinha-mos uma cantina da Polícia onde eramos comensais por
nos ficar mais barato, pois o ordenado, embora fosse o tripulo do que
ganhávamos na “metrópole” não dava para uma pensão decente. Só estou falar disto para dizer que a alimentação era quase
sempre a mesma, “pacaça velha” o que nos valia era a dentadura de jovem que
tudo roía. O melhor prato era o grão com bacalhau, uma vez por semana. A vivência fora
das funções profissionais era uma maravilha, pois o nível de vida em LUANDA era
de gente rica, bom clima, boas praias, boas esplanadas de cinema, nas
esplanadas das cervejarias com um cheiro a marisco contínuo, convidavam-nos a
sentar à mesa a deliciar umas boas canecas de cerveja, com os aperitivos que as
acompanhavam e eram à borla.
Vejam a diferença de Lisboa, onde o aperitivo eram tremoços.
Aqui era um pires de dobrada com broa, uns “esquisinhos” fritos, ou um pires de
camarão. Quem bebesse meia dúzia de cervejas, que era muito fácil atingir este
número, dado a temperatura que rondava sempre os 35 graus, não necessitava de
jantar. Por isto não podemos criticar a revolta dos “retornados”, com a vida
que lá tinham e como para cá vieram viver (alguns).
Quero-vos dizer que a minha intenção não é escrever a minha
biografia. E se escrevo muitas vezes na primeira pessoa… é porque, me é
mais fácil narrar os contos ou os factos que são comuns a muita gente.
Agora sim vou falar um pouco de mim, nos dois anos que
passei em Angola; foi um tempo bem passado, à parte dumas escaramuças com uns
tiros para o ar e umas cabeças partidas resultado de desentendimentos entre
negros e brancos, mas nunca provocados por mim, mas sim por alguns brancos, que
se diziam meus amigos e se aproveitavam da minha posição policial para
amesquinharem os nativos.
Isto dava sempre mau resultado, pois estávamos em plena divulgação
da igualdade de direitos, colocando de lado as cores, aplicando uma psicologia
que os nativos bem sabiam aproveitar, e alguns deles tinham mais cultura que
aqueles que os queriam diminuir.
Fiz uma viagem em serviço ao sul, a Silva Porto onde tudo
era pacífico, por isso os habitantes de lá não diziam Silva Porto, diziam Silva
Morto. Era tudo tão calmo que durante a noite, apenas se ouviam, ao longe os
grunhidos dos animais selvagens e o badalar do sino da torre, informando-nos as
horas. A noite que lá passei, quase não dormi, aproveitando aquela calma para
meditar, ainda hoje me lembro de tudo o que pensei naquela noite, as previsões
que fiz para o meu futuro, e que muitas se concretizaram felizmente. De regresso a Luanda, pois estava a mil quilómetros, a maior
parte do percurso feito em terra batida. Como não conseguia fazer a viagem só num dia, resolvi passar
por Nova Lisboa, hoje Huambo, onde pernoitei. Aproveitei para visitar conterrâneos,
que ali estavam radicados, há muitos anos e que nem sequer nos conhecíamos, mas
receberam-me muito bem. Daqui para Luanda foi um “pulo” de setecentos quilómetros,
lembro-me de ter almoçado na Cela um churrasco bem temperado com gindungo, que
ainda hoje me está a saber bem!...
Agora sim estava mais perto de Luanda, onde cheguei à noite.
Enquanto em Luanda fazíamos uma vida absolutamente normal,
no norte continuavam as guerrilhas que iam “libertando da vida” tantos jovens,
que sem culpa nenhuma, daquela guerra estupida, pagaram com a vida as asneiras
feitas por uma ditadura, que só terminou com uma revolução feita por um punhado
de corajosos. Bem hajam os capitães de Abril.
Quando terminamos os dois anos de comissão de serviço,
regressamos… e com a sorte de viajarmos no melhor navio da nossa frota mercante
O Infante D. Henrique (por onde andará este luxuoso paquete?) que maravilha. Uma
cidade flutuante. Se não viéssemos ao convés, não sabíamos que vínhamos a
navegar. Passamos novamente por Las Palmas, aí aproveitamos para
fazer umas compras, pois como estávamos numa zona franca, as coisas eram mais
baratas. Eu comprei um gravador de som, de bobines com fita magnética,
que ainda hoje conservo, e regalo-me de ouvir o que gravei há 50 anos, no resto
da viagem.
Ainda passamos pelo Funchal, ali fiquei chocado com o que
vi. Crianças com seis, sete anos, a angariar clientes para as casas de bordel.
O meu grupo trocou o bordel por uma visita a uma parte da ilha. As flores nesse
tempo abundavam por todo o lado. Visitei a ilha há dois anos e já nada é igual, é tudo mais
artificial. Corremos todas as tascas que existiam à beira do cais de embarque,
a beber o bom vinho da Madeira e a comer “bacalhau com cebola crua”. Como é que
chamam a este petisco?
Tão distraídos andávamos, que se esquecemos da hora do
embarque, quando chegamos ao barco, as escadas do cais, já lá não estavam. Felizmente
que o barco ainda estava encostado e tinha escada de serviço. Finda esta peripécia, foi só esperar mais vinte e quatro
horas para chegar a Lisboa, onde chegamos no dia 21 de Julho de 1965 e já
navegamos sob a ponte que se veio a
chamar Ponte Salazar.
Com o orgulho do dever bem cumprido, fomos recebidos pelo
Sr. Comandante-Geral da Polícia de Segurança Pública Portuguesa no seu
gabinete, pois dos mais de cem que fomos, só regressamos uma dúzia, pelo que
não foi necessário receber-nos na parada. Desejou-nos as boas vindas e distribui-nos
pelos diversos comandos.
A mim coube-me o comando de Coimbra. Pronto, a viagem acabou
aqui, onde suportei a farda, durante oito longos meses.
A parti daqui, o meu destino foi outro e as viagens também!
Vila Nova, Março de 2012.